A lenda viva Rory Russel esteve no Brasil divulgando sua volta à Lightning Bolt, marca criada por Gerry Lopez e Jack Shipley no Hawaii nos anos 70. Com o emblemático raio pintado em sua prancha e ao lado de nomes como Gerry Lopez, Jackie Dunn, Larry Bertlemann, entre outros, Rory comandou a “revolução da pranchinha” naquela época. Em 1975, ele ganhou a primeira etapa mundial sediada no Brasil, o Magno Aquacenter, no Arpoador (esta prova veio a servir de molde para o primeiro Waimea 5000 no ano seguinte), e em 76 e 77 foi coroado “em casa”, vencendo o Pipe Masters. Campeonatos à parte, Rory Russel tem mais alguns méritos incluindo a “descoberta” de famosos destinos de surf de hoje em dia, como G-Land, na Indonésia, e a criação de uma das pranchas mais clássicas com o tradicional símbolo do raio, a mini-gun batizada “The Pipeliner”. No início de junho, ele esteve na loja Boards Co em Ipanema numa sessão de autógrafos, onde exibiu uma reedição especial da Pipeliner, além de muita vibe em meio a bate-papos e fotos. Na manhã seguinte conversamos após uma sessão de surf na Praia da Reserva. Não é à toa que seu nome é escrito em tantas frases junto à expressão “Aloha Spirit”. Seu carisma e empolgação são contagiantes, e o que seria uma entrevista, se tornou praticamente um monólogo. Bastou ligar o gravador e fazer uma simples pergunta para o cara embarcar numa “viagem no tempo”, que em apenas 20 minutos conseguiu passar perfeitamente um pouco do feeling que era surfar no Hawaii antes do “boom” do esporte em 75.
Ontem você esteve no Arpoador novamente, 36 anos após sua vitória lá. O que você achou de diferente?
“Bom, basicamente a onda continua a mesma. Já os arredores… Cara, foi um verdadeiro flashback! Tudo bem similar, o cenário com aquela ilha no horizonte… Sensacional! Eu tenho uma forte lembrança das pessoas, da torcida e de ter que passar por toda aquela gente para chegar até a água. O entusiasmo dos brasileiros é incrível! E vocês têm uma relação tão íntima com o oceano que já faz parte do estilo de vida. Eu estava na Prainha ontem e todo mundo lá quebrava dentro d’água, eu fiquei chocado! Acho que tem a ver com a quantidade de onda que dá por aqui e a forma que as bancadas têm. Dá pra encontrar onda boa em algum lugar quase sempre… e o lifestyle é demais! As pessoas são amigáveis, extrovertidas e sempre dispostas a ajudar. Eu não falo muito português, mas me sinto em casa porque as pessoas se interessam em tentar se comunicar com você e estão sempre querendo ajudar. Eu não estou acostumado a isso!
No Hawaii, os locais são legais entre si, mas com o grande fluxo de visitantes as pessoas ficaram impacientes. Os brasileiros são mais tolerantes, mais hospitaleiros, diferente dos havaianos. Não dá para culpá-los também, porque até no meu tempo, por exemplo, o Gerry Lopez e esses caras vinham surfar no North Shore e a gente odiava! E isso vale para todos: Reno (Abellira), Ben Aipa, Larry Bertleman, Michael Ho. Eles vinham nos fins de semana e a gente levava numa boa, mas durante a semana nós tínhamos o North Shore só para a gente, cara! Era um lance completamente diferente, sabe? As pessoas iam pra lá somente para pegar onda, mas a gente estava lá vivendo nossas vidas e o surf era uma grande parte daquilo. Nós não tínhamos televisão, garotas… A gente não tinha nada no North Shore! (risos). Eu era o resultado daquele cenário, como não tinha nada para fazer depois da escola, dizia: ‘Vamos lá brincar na água’. E não tinha tempo ruim, pegava prancha emprestada, pegava jacaré, qualquer coisa mesmo. Pegar jacaré no shorebreak de Waimea, você pode imaginar no que resultava? (risos).
“Se você surfa para ser alguém, você está surfando pelos motivos errados”
– Rory Russel
Na verdade, eu nadava muito bem, fazia parte de um time e fui até campeão de natação do Hawaii. Tudo bem que era um time de revezamento, então, não posso levar todo o crédito. A princípio eu odiava, mas meu pai, o coronel, me fez entrar na natação e no fim valeu a pena, tomei gosto pela parte da competição. Eu não fazia pelo surf, sabe? Mas se tivesse que recomendar alguma atividade para um surfista seria a natação e o skate. Eu andava muito de skate! A primeira half-pipe do Hawaii nós construímos no quintal de casa e era alucinante! O surf não era importante para mim, era simplesmente uma parte da minha vida. Eu não surfava para me tornar alguma coisa. ‘Se você surfa para ser alguém, você está surfando pelos motivos errados’, essa é minha filosofia. Mas se você surfa de coração, aí o resultado vem até você. Você vai saber o momento se tiver a atitude e as intenções certas.
Assim era no North Shore, não tinha crowd e não existia essa competição dentro d’água. Aí inventaram o strap e eu sabia que ali era o fim. Porque, até então, você perdia a prancha e tinha que nadar atrás dela por 20 minutos! Imagine isso em Sunset… Você tomava uma vaca e falava: ‘Valeu! Até mais!’ (risos). Só os caras bons se mantinham no line up, todo o resto estava nadando. Eu lembro a primeira vez que vi um strap, o cara do meu lado vacou e a prancha dele apareceu do lado dele. Eu pensei: ‘Que cara sortudo!’ Aí então ele caiu de novo, a prancha novamente apareceu do lado dele e eu já estava dizendo: ‘Nooossa!’, aquilo simplesmente não acontecia, sabe? Foi aí que vi a cordinha. Na hora pensei: ‘Ahhh não, agora todos vão estar no line up e não nadando!’. Desde então os novos surfistas não se frustram mais.
Por exemplo, a primeira vez que fui surfar com meu irmão, ele entrou primeiro e já tomou a série inteira na cabeça. Daí, ele jogou a prancha na areia e disse: ‘Isso não é pra mim’. Comigo foi bem mais fácil, a série entrou depois que eu já estava posicionado, fiquei em pé na prancha e achei demais, então, é só uma questão de ‘timing’. Se ele tivesse entrado pouco tempo depois não teria desistido. Agora com a cordinha você cai e pensa: “Ah, tudo bem, vou tentar de novo!” e não fica desencorajado. Então, a população em massa aderiu. E agora você tem até jet skis pra te levar pro outside, fica cada vez mais fácil! (risos). É engraçado, antes era completamente diferente, era um lance até espiritual. Em dias de Pipeline com oito pés, só eu e Deus… era papo de sentar na areia e rezar por meia hora antes de cair! Para ter certeza de que era real (risos).
Eu saí em muitas revistas na época, mas não tentei sair. Os moleques hoje em dia pegam as revistas correndo para ver se tem alguma foto deles lá. Se você não quer que sua foto saia, ela vai sair. É como se Deus estivesse te testando. Fazendo com que você surfe pelos motivos certos. Outra coisa, não tinha ninguém por perto, então, quando perguntávamos: ‘Vocês vão pagar a gente pelas fotos?’, os fotógrafos diziam: ‘Não, você que passou na frente da câmera!” (muitas gargalhadas).